Por. Pr Kleiton Fonseca
Introdução.
Nos tempos antigos, quando César Augusto proclamava suas vitórias, o termo evangelho — do grego euangelion — não evocava cruz, arrependimento ou Reino eterno, mas sim poder, glória humana e domínio imperial. Era uma “boa notícia” para exaltar o homem no trono e subjugar os povos sob sua autoridade. Tragicamente, em muitos círculos evangélicos de nossos dias, o conteúdo do evangelho parece ter voltado às suas raízes pagãs: triunfalismo, endeusamento de líderes e imperialismo religioso.
Este artigo propõe um confronto necessário entre o evangelho de César e o Evangelho de Cristo. Ao entender como a palavra evangelho era usada no contexto romano, veremos que muito do que hoje é pregado em nome de Jesus mais se assemelha à propaganda do Império do que às Boas-Novas do Reino de Deus.
O Evangelho segundo César
O termo grego euangelion (boas novas) não nasceu nos lábios dos apóstolos. Antes de Cristo, já era amplamente utilizado no mundo romano como um anúncio oficial de vitória, nascimento de um imperador ou qualquer evento que reforçasse o domínio de Roma sobre o mundo. A famosa inscrição de Priene (9 a.C.), por exemplo, declara o nascimento de César Augusto como “o início do evangelho para o mundo”.
O evangelho romano era, portanto, um anúncio triunfalista: exaltava o poder humano, o domínio político e a glória dos homens que se diziam filhos dos deuses. A paz de Roma (pax romana) era celebrada como uma dádiva divina concedida por meio de seus imperadores. Não havia arrependimento nem humilhação, apenas exaltação e imposição de autoridade.
O evangelho de César era propaganda. Seu conteúdo era político, seu centro era o homem, e sua consequência era o culto ao poder.
A Subversão do Evangelho do Reino
Quando Jesus começa seu ministério com a proclamação:
“O tempo está cumprido, e o Reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho” (Marcos 1:15),
Ele não estava apenas usando uma palavra conhecida — estava subvertendo um sistema inteiro. O uso do termo evangelho no contexto de um reino divino, fundado sobre arrependimento, fé e serviço, representava uma afronta direta ao império de César.Enquanto o evangelho imperial proclamava vitórias por meio de sangue alheio, o Evangelho de Jesus proclama vitória por meio da entrega do próprio sangue (Marcos 10:45). Enquanto César exigia submissão e idolatria, o Cristo de Deus chama seus seguidores a tomarem a cruz e negarem a si mesmos (Lucas 9:23).
O Reino de Deus é um reino invertido — onde os últimos são os primeiros (Mateus 20:16), os humildes são exaltados (Lucas 14:11), e os mansos herdam a terra (Mateus 5:5). Paulo, escrevendo aos coríntios, ridiculariza o triunfalismo humano ao afirmar que “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios” (1 Coríntios 1:27).
O Evangelho do Reino é escandaloso, não por prometer poder, mas por apresentar a cruz como centro da vitória. Como afirma Michael Horton:
“O Evangelho não é um plano para alcançar sucesso, mas uma proclamação de que o sucesso humano morreu na cruz.”
(HORTON, M. “Cristianismo sem Cristo”. São Paulo: Cultura Cristã, 2009).A igreja primitiva compreendia esse contraste. Quando chamavam Jesus de “Kyrios” (Senhor), estavam fazendo uma profissão de fé política e teológica: Jesus, e não César, é o Senhor. Isso custava perseguição, prisão e até martírio — algo impensável no triunfalismo moderno, onde o “evangelho” muitas vezes se transforma em uma ferramenta de conquista pessoal.
O Evangelho do Reino não exalta homens, mas esvazia o ego. Ele não constrói impérios religiosos, mas forma discípulos humildes. Ele não é centrado em plataformas, palcos ou popularidade, mas no Rei crucificado e ressurreto.
Evangelicalismo e o Retorno a César
O que vemos em boa parte do evangelicalismo atual é a ressurreição, não de Cristo, mas de César. A linguagem triunfalista, o culto à personalidade, os discursos centrados no “eu”, o uso da fé como ferramenta de dominação e prosperidade — tudo isso reflete, com espantosa fidelidade, as bases do antigo evangelho romano.
Roma oferecia “boas novas” que exaltavam o imperador como salvador, portador da paz e mediador entre os deuses e os homens. O evangelicalismo triunfalista moderno, por sua vez, ergue seus próprios césares: líderes intocáveis, ungidos acima da crítica, que concentram autoridade, acumulam riquezas e exigem lealdade irrestrita.
Muitos púlpitos tornaram-se palanques de autoajuda, onde o pecado é minimizado, a cruz é diluída e Cristo é apresentado mais como coach de sucesso do que como Senhor crucificado. A lógica é imperial: quanto mais poder, influência e aplauso, mais “abençoado” é o ministério. A mensagem se torna antropocêntrica — gira em torno do homem, de sua vitória, de sua “chave”, de sua “voz profética”.
A igreja de César exaltava o governante como “filho dos deuses”. Igrejas evangélicas hoje exaltam líderes como se fossem “ungidos divinos” — acima da Palavra, acima do rebanho, acima da correção.
Como disse John Stott:“A cruz de Cristo não apenas salva; ela também humilha. Ela desmonta toda vanglória humana.”
(STOTT, J. “A Cruz de Cristo”. São Paulo: ABU Editora, 1991).Mas o que vemos é o oposto: conferências luxuosas, ostentação de títulos apostólicos e eventos que mais se parecem com procissões imperiais. Pastores se tornam influenciadores; apóstolos, CEOs. O Reino dá lugar ao império.
O teólogo David Wells alerta:
“O mundo evangélico tornou-se um espelho da cultura ao redor — e não uma janela para a eternidade.”
(WELLS, D. “God in the Wasteland”. Eerdmans, 1994).Roma controlava pela propaganda e pelo medo. Muitos líderes hoje controlam pelo emocionalismo e pela promessa de bênçãos, sempre condicionadas à fidelidade... à instituição. O evangelho se transforma em um produto, e a fé, em moeda de troca. A lógica é imperial: tudo gira em torno do centro do poder humano.
Conclusão: Entre César e Cristo
O verdadeiro Evangelho não foi proclamado nos corredores do poder, mas nas vilas da Galileia; não foi confirmado com espadas, mas com pregos; não celebrou a exaltação do homem, mas o rebaixamento voluntário do Filho de Deus.
Enquanto o evangelho de César prometia paz por meio da força, o Evangelho de Jesus traz reconciliação por meio da cruz. Um exaltava o imperador como salvador; o outro aponta para um Cordeiro morto e ressurreto, que reina não pela violência, mas pelo amor sacrificial.
Paulo escreve com firmeza:
“Estou admirado de que vocês estejam se desviando tão depressa daquele que os chamou pela graça de Cristo, para seguirem outro evangelho. O qual, na verdade, não é outro...” (Gálatas 1:6–7).O apóstolo reconhece: existe uma tentação constante de transformar o Evangelho em algo mais palatável, mais triunfante, mais humano. Mas isso é trair a cruz. É voltar a César.
A igreja contemporânea precisa urgentemente reaprender a diferença entre glória e vanglória, entre serviço e dominação, entre Cristo e César. Precisamos de uma fé enraizada na Palavra, moldada pela cruz, sustentada pela graça e orientada para a glória de Deus, não dos homens.
Precisamos, enfim, de uma geração que abandone os púlpitos-palácios e volte aos púlpitos de madeira — onde não há espaço para coroa de ouro, mas há espaço para a coroa de espinhos.
Porque, se César fosse vivo hoje, com seu carisma, poder, vitórias e promessas de prosperidade...
...provavelmente seria chamado de apóstolo por muitos que se dizem evangélicos.
Referências
HORTON, Michael. Cristianismo sem Cristo: A alternativa ao evangelicalismo centrado no homem. São Paulo: Cultura Cristã, 2009.
STOTT, John. A Cruz de Cristo. São Paulo: ABU Editora, 1991.
WRIGHT, N. T. Simplesmente Cristão: Por que faz sentido a fé cristã. São Paulo: Ultimato, 2010.
WELLS, David. God in the Wasteland: The Reality of Truth in a World of Fading Dreams. Grand Rapids: Eerdmans, 1994.
A Bíblia Sagrada: Nova Almeida Atualizada. Sociedade Bíblica do Brasil, 2017.
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